sábado, 24 de março de 2012

DEONÍSIO DA SILVA – NÃO FAÇO MC DONALDS LITERÁRIO




       
 
Por Pedro Paulo Rosa
Foto: Leya Brasil / divulgação
Revisão textual: Paulo Cappelli

Escritor e educador, Deonísio da Silva compartilha não só o tema principal do seu atual romance, “Lotte e Zweig”, como também brinda O HÉLIO com o seu pensamento provocativo, idealista e extremamente necessário para enriquecer a mentalidade brasileira. Deonísio começou a carreira ainda jovem e teve uma base cultural bem vasta no seminário em que estudou. O seu primeiro conto lhe rendeu a prisão por ter sido considerado subversivo aos militares. Nosso entrevistado não é só um escritor, mas um homem reflexivo; dialoga com os sonhos e com a realidade ao mesmo tempo em que belamente elucida questões fundamentais para a cultura, política e educação de nosso país mostrando o seu posicionamento.

O HÉLIO: Você tem uma ligação forte com assuntos proibidos. Acho muito louvável uma pessoa que estuda um momento tão delicado no país. Por que isso?

DEONÍSIO DA SILVA: Olha, o meu conto de estreia, que me rendeu a prisão, 72 horas incomunicáveis e a condenação de dois anos de prisão, que cumpri em liberdade. Fui, de alguma forma, um presidiário infanto-juvenil porque estudei num seminário de padres. A gente era tratado como presidiário. Era filho de uma família pobre, no tempo em que a pobreza não era absoluta. Ganhei um presente maravilhoso neste seminário que foi a formação humanista, com ênfase em História, nas línguas e na cultura geral. A experiência com a prisão é que realmente foi um choque na minha vida. O conto foi denunciado como ofensivo aos militares, isso em 1974. Era ainda aluno do curso de Letras em Ijuí (RS), mas fazia uma coluna em um jornal do Paraná. Nem gosto muito de falar sobre este momento da minha vida. Agora, essa prisão me deu, Pedro, um olhar muito particular para observar a censura no Brasil. Ao examinar os 508 livros proibidos pós 64, era 507 mais um, que era eu! Queria fazer o mestrado sobre aquele estudo. E fiz o mestrado e o doutorado, na USP, sobre a censura. Por isso, tive muitos problemas com orientadores; problemas de ordem teórica e redacional. Pois a academia tem um espartilho danado que eu, como escritor, não tenho. Nunca quis escrever para cinco leitores. Sempre quis escrever para os meus leitores. Isso me fez ter uma fixação pela repressão, mas uma fixação ligada à vontade de saber. Temos um olhar viciado em relação à repressão. Culpamos o ditador, e não percebemos que a ditadura se reproduz em micro-estruturas. O Estado autoritário tem um apoio autoritário na família, na igreja e na educação. A Microfísica do Poder nos mostra isso. Quando Zweig se matou na companhia da mulher, digo que isso foi um assassinato coletivo. Pois quando um casal chega à decisão de tirar a própria vida, ninguém mais naquela cidade de Petrópolis o apoiou em nada. Nem o padeiro, o vizinho, nem o colega de fumar charuto. Quer dizer, digo sempre: o suicídio é um assassinato coletivo.

O.H.: Como foi a elaboração da pesquisa histórica para a construção desse livro, que é romance?

Deonísio: Tive meu trabalho facilitado. Donald Prates fez uma biografia do Stefan Zweig sem emoção, a meu ver. Depois, li outra biografia do Alberto Dines, Morte no Paraíso. Aí sim, me desbravou tudo. Comecei a conversar muito com o Dines sobre isso. Nesse período, sem que a gente conversasse, o Silvo Back fez um filme chamado Lost Zweig, que ainda não entrou em circuito comercial. Daí, também consegui uns documentos que a Casa Stefan Zweig, lá de Petrópolis, liberou.

O.H.: Que tipo de documentos?

Deonísio: Cartas, que tem publicação apenas em inglês, que a Lotte (esposa de Stefan) trocava com pessoas do seu convívio. Não me interesso em saber pra quem ela disse tal coisa. Me interessa saber o que ela disse pra quem estava documentado. Fui muito a Petrópolis. Visitei a casa de Stefan Zweig muitas vezes. Analisava fotografias, paredes. E as fotos falavam, as paredes falavam...aquele lugar úmido, abafado. Imagino como devia ser o verão numa noite abafada. Petrópolis engana. Quando fica quente, fica muito quente.

O.H.: Onde é que nasceu esse interesse pelo Zweig?

Deonísio: Sou um escritor, uma pessoa, um cidadão que foi criado no Brasil meridional, em comunidades de colonização alemã. Embora os neonazistas não fossem maioria nas comunidades, eles existiam bastante. Lá em Ijuí (RS), por exemplo, a Câmara de Vereadores se reuniu para me declarar persona não grata na cidade porque dei uma entrevista à revista Manchete dizendo que vendiam suásticas em Ijuí, era só comprar. Daí, o jornalista da Manchete não acreditou e eu o levei até o local de venda. Ele levou um susto porque eram vendidas naturalmente. Isso em 1977. O jornalista comprou a suástica de prata porque era mais barata. Ele colocou na capa da revista Manchete a suástica com a nota fiscal da compra. Quer dizer, o nazismo também alcançou um judeu austríaco refugiado na cidade de Petrópolis! Isso me fez refletir sobre essa coisa monstruosa do século XX, o nazismo.

O.H.: Como Zweig encontra Petrópolis?

Deonísio: Ele encontrou Petrópolis por amor à Lotte, que sofria de asma. Acho que ele buscou um refúgio para escrever, sair dessa oba-oba carioca e para a Lotte respirar. Embora gostasse do Brasil, a língua não é dele, os costumes não eram dele. Ele era expatriado de tudo: judeu e austríaco. Fiquei no terreno da imaginação, mas acho que a escolha por Petrópolis foi para salvar a sua esposa.

O.H.: Você quis vestir seu livro com romance por falta de que ou em complemento ao que?

Deonísio: É o meu nono romance. Tive um tio que se suicidou, irmão do meu pai. Cheguei a essa coisa que o suicidado pratica um homicídio. O sujeito que se aplica a morte é o homicida. No caso do Zweig, o que me chamou muita atenção, ele é um desesperado sui generis, pois o seu tom é totalmente tranquilo, de que as coisas iam melhorar. Acho que, no íntimo, ele achava que a monstruosidade do holocausto, aquela guerra, tinha ganhado uma dimensão tal que tanto faz quem ganhasse ou perdesse. A escravidão brasileira, falando em monstruosidade, faz parte de catástrofes sociais inapagáveis. Os índios é que deveriam decidir qual a nossa cota! O negro deu um patrimônio cultural incrível para o Brasil. E agora achamos que, fazendo uma concessão ou outra, estamos ajudando.

O.H.: Como é o teu processo de escrita? Qual o ritual?

Deonísio: Pedro, sou um profissional com 34 livros publicados. Você me faz uma pergunta inquietante. Já escrevi por gosto. Escrever é uma das coisas das que mais gosto de fazer, assim como beber vinho. Acontece que, depois, como um jogador de futebol que ganha uma posição, aquele que era o seu brinquedo vira a sua ferramenta de trabalho. E foi isso que fizeram comigo. Aí, querem crônica, ensaio, resenha. E eu tenho uma incapacidade de dizer não para aquilo que posso fazer. A imprensa nasceu com o escritor escrevendo no verso do anúncio. E sem anúncio, não tem como receber dignamente. Ainda mais no Brasil, com tiragens baixas, nenhum jornal sobrevive sem anúncio. Há pessoas que acham uma vergonha porque escrevo uma coluna de etimologia na revista Caras. Acho que o conhecimento precisa ser expandido. Alcançar o número máximo de gente. Tenho também uma coluna na Band News com o Ricardo Boechat. Acho que alguma coisa fica. Sou professor, acredito nas pessoas. Voltando ao gosto de escrever, nunca me submeti ao mercado. Não fui fazer coisas abomináveis, como pedir para me darem uma força porque estou precisando. Acho assim, se o livro valer a pena, alguém vai se interessar por ele. Não sou eu que vou dizer que vale a pena o meu livro. O leitor é quem precisa falar. Sou um homem partido ao meio entre educação e literatura. E que bom que as duas partes se juntaram.

O.H.: Em que momento essas partes se uniram?

Deonísio: (RISOS) Certas perguntas são inquietantes, não é? E as suas perguntas são muito inquietantes. Tive um amigo, colega de seminário, que se reencontrou comigo 30 anos depois. Ele era muito bom em latim. Chama-se Patrício. Perguntei a ele: “Patrício, em que momento da sua vida, você achou que era melhor cuidar de macarrão (ele tem uma empresa de macarrão em Santa Catarina) do que traduzir Terêncio, Juvenal, Sêneca?". Ele olhou bem para mim e falou exatamente assim: “Bateu água na minha bunda e eu tinha que aprender a nadar. Você acha que, na sociedade brasileira, sobreviveria com as minhas propostas de tradução de latim?”. Então, gosto de pessoas que tem afiado o senso de realidade. Porque tenho mais afiado o senso do sonho. Tem gente que chega pra mim e fala: “Professor Deonísio, o senhor é professor aqui da Estácio. O aluno daqui é muito fraquinho; não conseguiu passar num vestibular das universidades públicas.” Falei para o sujeito: “ Sou um médico de CTI, cara! Recebo doentes em fase terminal. Se estou numa CTI, tenho que salvar.” O meu trabalho, Pedro, ao receber esse aluno – reconheço, uma grande parte é fraca – é oferecer um ensino de qualidade. Fazer com que ele veja que a língua portuguesa não é aquela que ensinaram no ensino médio ou segundo grau. Há professores que ensinam ao aluno a odiar literatura e escritores. Então, eu ensino a compreenderam os saberes e os sabores.

O.H.: Nesse sentido, a literatura transforma realmente a vida de uma pessoa?

Deonísio: É comum dizer o seguinte, que a literatura não transforma o mundo. Transforma as pessoas, para que estas transformem o mundo. Sou um admirador daqueles que andam na contramão. Por exemplo, não gosto muito dessa submissão geral que hoje a juventude tem diante do mercado. A maioria dos meus interlocutores jovens estão doidinhos para serem cooptados pelo mercado da música, ou do esporte, ou do jornalismo, enfim, para o Deus Mercado. Ao mesmo tempo, porém, eles não têm um discernimento de ver que um Bill Gates se tornou o homem mais rico do mundo porque, na garagem da casa dele, ele andou contra o mercado. Quis inovar. Um sujeito que inventou muitas coisas. Trocando de assunto, mas não muito, estive conversando com o Leonardo Boff e disse que ele passou pelas mesmas punições que Galileu. E o Brasil não vê Boff como figura referencial da nossa luta. Ele é uma figura, Pedro, fantástica, mas que é tratado como uma espécie de... Rose Marie Muraro é outra. Assim como Frei Betto. Eu tenho muita admiração pelos hereges.


Capa do livro do novo livro de Deonísio da Silva



O.H.: Você foi herege lá no seminário em que estudou?

Deonísio.: Não, ao contrário. Saí com 16 anos e não tinha maturidade para ser herege. Admiro os que ousam discordar do grande todo. A submissão ao mercado é uma prova de anulação.

O.H.: Mas, você já não foi submetido ao mercado em algum momento? Até por ser um grande escritor, relacionando-se com grandes jornais, revistas, rádios e editoras?

Deonísio.: Olha...às vezes, sou mal visto por escrever na Caras. Nunca tive um único corte em nada do que escrevi nessas revistas. Acho que lido bem. Mando, sempre, o primeiro exemplar de cada livro que publico para minha primeira professora, que me alfabetizou e que tinha um cheirinho bom quando me abraçava e que tem até hoje. Foi uma das minhas primeiras paixões. (RISOS) Em seis meses, estava alfabetizado e lendo. Agora, quem me ajudou a publicar meu primeiro livro foi o Rubem Fonseca.

O.H.: Me conta isso.

Deonísio: Era aluno de Letras e teve um trabalho que todos iam fazer sobre Machado de Assis, José de Alencar. Pedi para o meu professor lá de Ijuí, chamado Gustavo Maciel, para fazer o trabalho sobre um outro autor. Sou um apaixonado pela obra do Rubem Fonseca. Retomei a obra de Rubem Nos Bastidores da Censura, que é minha tese de doutorado. Meu professor deve ter me achado louco, pois era um autor ainda pouco conhecido, isso em 1973. Consegui que meu professor gostasse muito do trabalho. E mandou para o Álvaro Pacheco, que mandou para o Rubem. E o Fonseca, que não respondia para ninguém, ... (RISOS) aí vem a lei dos acasos. Ele me escreveu. Tomei um ônibus, fiz 23 horas de ônibus só para conhecer o Rubem e não me arrependo. Só depois de um tempo tive coragem de dizer que escrevia uns contos. Aí, ele me levou para a editora Arte Nova. Então, fiquei colega de catálogo da Clarice Lispector, João Ubaldo Ribeiro. Quer dizer, estava cheio de alegria!

O.H.: Como que a gente faz para o livro ficar mais barato?

Deonísio: Acho que as editoras brasileiras tomaram um caminho perverso, que é fazer vendas maciças para o Governo. Acho também que as grandes editoras não estão investindo nos autores nacionais. Se esses autores não forem revelados pelas grandes editoras nacionais, eles serão revelados por quem? As grandes editoras publicam autores estrangeiros de sucesso porque o país desses autores tem uma política editorial de valorização. Se o Brasil adotar esse caminho de publicar autores estrangeiros de outras editoras, a literatura nacional vai morrer. Acho que tem que investir nos autores novos. Os editores brasileiros arriscam pouco. A venda não pode ser o foco mais pesado. Tem que lançar mais gente nova em todos os gêneros! Quanto ao preço, a culpa não é dos editores. Acho que a culpa é do Estado, que tem que suprir as necessidades culturais do seu povo. Por exemplo, em vez do Estado comprar essas seleções de livros de um milhão de exemplares, que a gente não sabe como são feitas, as bibliotecas públicas deveriam ser obrigadas a comprar o autor nacional. Tem que ter uma política de apoio. Eles encontram verba para o terreno, para o vidro, para o tijolo, para a corrupção, mas não põe livros lá dentro. Deviam comprar os livros de autores brasileiros. De todos. Ter uma política de compra. Poderia até privilegiar regiões. Belém lendo o Rio de Janeiro, São Paulo lendo Rio Grande do Sul.

O.H.: Isso seria fantástico.

Deonísio: É uma boa bandeira, né? (RISOS). Escritor é olhado ainda como um curioso. A submissão ao mercado se tornou arrasadora. É perversa essa hegemonia do mercado.

O.H.: Em algum momento você teve uma crise com suas histórias, seus personagens; ou quis parar de escrever, alguma coisa nesse sentido?

Deonísio: Ah, a gente tem isso muitas vezes... (SUSPIROS). Não gosto de escritores que dizem que já tem o desfecho, o fim da história. Eu, não. Minha direção é o vento, como barco a vela em alto mar. Pode haver tempestade, piratas, ataque, mudanças de planos. Tento chegar ao porto que programei, mas não sei qual é o porto. Sei navegar. Criar é adentrar a uma selva escura, como disse o Dante.

O.H.: Você falou que vive no senso do sonho. Em qual momento a hegemonia de mercado te limita, te neutraliza, por exemplo, a se posicionar politicamente ou te ameaça a não ser tão utópico? Ainda mais aqui neste bairro, a Barra da Tijuca, que respira os ares do mercado hegemônico.

Deonísio: Olha, não sou apenas ameaçado todos os dias. Sou prejudicado todos os dias. Quando entro numa livraria e os livros que lá estão, estão por motivo extra literário; extra qualidade. Por exemplo, quem é que vai ficar livre do Padre Marcelo Rossi, com aquele poder que ele tem na mídia? Ele vendeu milhões de exemplares. Tenho direito a não gostar daquele livro? Não. Acho que há diferença entre um prato refinado e um big Mac. Eu não faço Mc Donalds literário, Pedro. Acho que os meus romances são um prato refinado. Não esperarei que os que comem só big Mac digam que o meu prato é delicioso. Se a gente forma o gosto, é verdade também que a gente deforma o gosto. Um sujeito que está acostumado a ver novela por cinco horas ao dia, a assistir a uma narrativa que de dez em dez minutos é interrompida por uma chusma de comerciais, no dia em que ele pegar um parágrafo do Marcel Proust, ele vai a nocaute, cai durinho e larga o livro. Você, como escritor, sabe exatamente do que estou falando. Porque não houve uma educação narrativa. Ninguém lhe disse que aquilo não é narrativa, é gênero. Uma literatura de qualidade que chega ao âmago do que o autor precisa expressar, exige outro ritmo. Uma amiga minha chegou à minha casa, leu meu novo livro em seis horas. Tranquilamente. Agora, evidente que uma pessoa educada apenas por telenovela ou por literatura de baixa pestana, literatura de massa, não aguentará ler um romance que a obrigue a pensar, a sentir as coisas sob outros pontos de vista. Ou, que a obrigue a sentir que está errada em certos posicionamentos na vida e que já é tarde demais.

O.H.: Resumindo, quem foi Zweig para o Deonísio da Silva?

Deonísio: Foi um herói trágico. Acho que ele sofreu de uma doença que...Acho que um indivíduo precisa ter um mínimo de egoísmo na vida. Tive um professor, que foi o melhor que tive na vida; ele se chama Guilhermino César. Ele sofreu por uma excessiva modéstia. Acho que você tem que ter modéstia, mas quando é excessiva, te prejudica. O Drummond de Andrade dedica um poema belíssimo ao Guilhermino. Tenho orgulho de ter tido aula com um professor que foi inspiração do Drummond.

O.H.: Estamos estreando no século XXI. Apenas 12 anos de convívio com esse novo tempo. Você está otimista?

Deonísio: Olha, Pedro, sempre fui otimista desde o berço. Acho que ouvi, ainda no útero, palavras de otimismo do meu pai, homem muito otimista. Minha mãe dizia que eu era só couro e osso, muito magro. Mamãe me colocava no berço e as vizinhas dela me olhavam e falavam: “esse aí não se cria”; e meu pai, que estava debaixo da terra cavando carvão, chegava todo sujo, se aproximava do berço e dizia: “Ei, se cria sim!” E eu me criei. A criação é também uma tarefa principalmente sua. Então... (SUSPIROS), se não fosse otimista, teria desistido há muito, há muito tempo! Hoje mesmo uma revista me perguntou se acreditava no Brasil. Veja bem, Pedro, se você olhar o Brasil como o deus Janus, com uma face que olha para o futuro e a outra para o passado simultaneamente, perceberá que tudo melhorou. Mesmo o favelado da Rocinha vive melhor do que um nobre do século XVIII. O brasileiro está vivendo melhor. O processo é longo! O brasileiro está vivendo melhor, embora os paulistas não gostem de lembrar, principalmente depois de Getúlio Vargas. Que, com a consolidação das leis do trabalho, des – escravizou o país. Foi um governo extremamente contraditório. Pode notar também que a República piorou muitas coisas que a Monarquia havia conquistado. Hoje, o primeiro olhar que damos a um político é de suspeição. Quer dizer, veja você, é um motivo de pessimismo ter um projeto “ficha limpa”, olha que inversão! Estar cândido, estar limpo deveria ser óbvio! Inclusive, a etimologia da palavra candidato vem do sujeito cândido, que vestia branco e era quase santo.

O.H.: Maravilha, Deonísio. Gostou? (RISOS)

Deonisio: Gostei muito de falar pra você, Pedro. Porque você faz umas perguntas interessantes, algumas que nunca foram feitas e isso é importante.






domingo, 18 de março de 2012

PEDRO BERNARDO – JOVEM MADURA CARREIRA


Por Pedro Paulo Rosa
Foto: Ravini Padilha
Revisão textual: Paulo Cappelli



Pedrinho do Cavaco e Pedro Bernardo são quase a mesma pessoa. Pode parecer óbvio, mas conhecendo mais o lado contemplativo do Pedro Bernardo, percebemos no garoto de cinco anos, criado em Água Santa, região da zona norte carioca, uma força de talento musical que, atualmente, leva Pedro às telas da televisão.

Levado pelo pai para “quase todas”, como mesmo frisa Pedro Bernardo, rodas de samba do Rio de Janeiro, nosso entrevistado pode beber da riqueza popular do samba da Mangueira assim como se enriqueceu com o piano clássico, instrumento em que se debruçou por dez anos. Com 21 anos, Pedro conhece desde os oito Alexandre Pires, que o apadrinha e, aos 13 anos, ganha um dos seus melhores amigos e parceiros: Milton Nascimento. A carreira de Pedro Bernardo se realiza tão precocemente quanto a sua vontade de se entregar para a música e, agora, para sua antiga paixão – atuar.

PEDRO BERNARDO: O Alexandre Pires foi o primeiro cara que me ajudou na música. Fui do projeto social “Mangueira do Amanhã”. Ele foi visitar a quadra e me viu. E me falou que tinha que ir com ele. E me chamou para entrar no SPC (banda Só pra Contrariar); entrei e começamos a fazer show, a fazer programas de televisão. Foi o primeiro padrinho musical mesmo.

O.H.: E você tinha quantos anos?

Pedro: Oito anos. Só que chegou um momento em que meu pai falou que ia me tirar. O motivo foi que precisava focar mais nos estudos. Meu pai sempre se preocupou em não me deixar esquecer de estudar. Agradeço muito a ele por ter me feito entender que, aquele momento, foi só mais um momento. Então, me profissionalizei, fui estudar piano clássico por dez anos. Estudei jazz também.

O.H.: E como foi a transposição da música para a arte televisiva?

Pedro.: Na verdade, sempre tive vontade de atuar. Mas, música é aquilo. Dedicação e foco. Acaba que não há tempo para muitas outras coisas. Sempre me disse que precisava procurar um curso para começar a investir na minha carreira de ator. E aí, pintou a oportunidade de fazer o este para Malhação. O Eri Johnson (ator) ficou sabendo que a Globo precisava de um cara com o meu perfil e aí me indicou para fazer o teste. Fiz três testes e passei.

Pedro Paulo Rosa e Pedro Bernardo 


O.H.: Assisti ao documentário que fala sobre o seu envolvimento com música e samba; o resultado é excelente. Incrível ver tanta gente talentosa de diferentes áreas e gerações falando bem do seu trabalho. Milton Nascimento é um forte exemplo...

Pedro.: O Milton foi a mesma situação que aconteceu entre mim e o Alexandre Pires. Só que um pouco mais tarde. Tinha 13 anos. E Milton foi lá à quadra num dos grandes eventos promovidos pela escola.  Fui tocar e o ele me viu. Perguntou se podia tirar uma foto comigo! (RISOS). Po, o cara é o Milton Nascimento. Eu é quem tenho que pedir uma coisa dessas. Então, trocamos telefone e começamos a amizade e parceria a partir desse momento. De lá pra cá, participei de show dele e, atualmente, temos uma música em composição conjunta. A música se chama “Gota de primavera”. Também fui um dos produtores do disco dele. Além dele ser meu padrinho musical, é meu parceiro.

O.H.: Qual foi o posicionamento da sua família? Sempre todos te apoiando?

Pedro.: Sim. Ninguém mexe com música na família. Fui o primeiro da família, vamos ver se meu filho vai tocar! Meu pai sempre me levando para os sambas, sempre. Ele e minha mãe me apoiam. Meu irmão é que foi mais preocupado comigo, sempre sugerindo que tentasse outras áreas que não só a música. Só que, música, você tem que focar. Consome muito. Quem me deu esse conselho foi o Dudu Nobre. Teve uma época em que queria cantar, tocar todos os instrumentos, tudo ao mesmo tempo, sabe? Sempre fui muito de conversar com a galera e tirar proveito desses feras. Milton, por exemplo, me aconselha muito.

O.H.: Fico pensando, você é novo; como é que faz, além de ser tão talentoso, para trilhar esse caminho, entre tantos expoentes da música popular brasileira? Hoje em dia tem muita gente querendo ser ator e cantor, por exemplo. Tem ou não espaço para todo mundo?

Pedro.:  Cara, na verdade, é um dia após outro. É difícil. Costumo dizer que o sol nasce para todos, mas a sombra, é para poucos. Batalho desde os cinco anos de idade. Meu pai me levava para quase todas as rodas de samba desse Rio de Janeiro. Meu pai me defendia mesmo. Hoje, ainda com 21, recebo muito desaforo. Eu e meu pai já passamos por muitas! Fui o primeiro ganhador, por exemplo, do quadro “Se vira nos 30”, do Faustão, que já me conhecia através do Só pra Contrariar. O SPC fez o último programa no Teatro Fênix e o primeiro no Projac! E o primeiro “Se vira nos 30” foi só para convidados. Isso é interessante demais, nunca contei isso pra ninguém. Fui com a minha mãe, isso numa quinta ou sexta feira, daí entrei numa sala em que estava só a nata. Sherman, Roberto Marinho, ... aí me chamaram lá na salinha; entrei, minha mãe entrou. Ai, o Sherman: “E aí, Pedrinho, toca alguma coisa no cavaquinho aí em 30 segundos”.  Executei em 28 segundos. Ele elogiou. Toquei de novo e fiz em 26 segundos. Aí, o Roberto Marinho virou e falou assim: “pode assinar o cheque que é do garoto”. (RISOS)

O.H.: O que você pensa ser mais complicado? Emplacar na música ou na TV?

Pedro.: Cara...boa pergunta...boa pergunta...Na música, a tua música tem que agradar. Se você não agradar a massa, você não dá certo. As pessoas tem que gostar. É difícil fazer um produto com tudo isso. E na TV, você precisa de carisma. O Milton Nascimento também fala isso: “eu sabia que o Pedrinho daria certo como ator porque qualquer música é sensível para atuar”. Concordo plenamente com ele. Lá na Globo, tive uma coach excelente, a Vera. Ela me ajudou demais e até hoje ajuda a todos nós do elenco. Não tive tempo de fazer curso. Na minha vida, foi tudo muito rápido e não dá para se perder oportunidade.

O.H.: Qual seria a sua marca autoral nas músicas?

Pedro.: Cara... (RISOS) ta fazendo umas perguntas boas! O meu cavaco tem o suingado da favela. Tem a quebrada malandra da favela.

O.H.: Engraçado estarmos falando em cavaquinista; quem estreou no Blog O HÉLIO foi o João Callado.

Pedro.: Ele é ótimo. Inclusive, o João Callado gravou para o meu Cd. É um ótimo cavaquinista. Mauro Diniz também é excelente. Tenho a minha identidade, mas não renego as riquezas que posso aproveitar dos outros músicos. Pedro, toco cerca de 20 instrumentos. Esses dias mesmo, gravei um rock no cavaco!

O.H.: E o Pedro Bernardo pianista? Seu piano também tem esse suingado da favela?
Pedro.: O piano me deu uma base imensa. No piano, você vê tudo. Todas as notas. É completo. Mas, sou muito grato a tudo o que o cavaquinho me deu até hoje. E sim, meu piano também tem o suingue da favela. Outro dia, fui à casa da Beth Carvalho (sambista) e ela me viu tocando piano. Ela me disse que serei um dos maiores pianistas populares. Por eu ter a base clássica do piano e também a base do samba.  O Maestro Prazeres também me elogiou muito no piano. Achei isso demais, muita humildade. Ele é um fenômeno.

O.H.: E o seu atual personagem?

Pedro.: Não teria melhor personagem para começar na televisão do que esse. É um cara que veio da favela. Apesar de não ter vindo da favela, sou de origem humilde. Rodei muita favela, sempre subi o morro. Convivi muito na favela. Esse lance de lutar, de vencer na música e pela música me identifica muito. O cara que já nasce na periferia tem que pensar como o Racionais MCs, se você é preto e é da favela, você já tem que ser duas vezes melhor. Então, o cara que nasce na periferia tem que lutar. Mesmo. É complicado. Mas, é super possível que um cara da periferia dê certo. A gente vê isso, graças a Deus, cada vez mais. Darei um exemplo: Ronaldo fenômeno.

O.H.: Pois é, o futebol acaba sendo símbolo de mobilidade social.

Pedro.: Exatamente. O futebol e o samba, né?

O.H.: Há diferença entre samba e pagode? Um mestre de bateria de escola de samba já me comentou, por exemplo, que existe.

Pedro.: Olha, sou também cria do Cacique de Ramos, e o meu pensamento é: samba é um gênero. E pagode, no dicionário, é uma reunião de sambistas. Mas, o mercado fez com que o pagode se torna um gênero musical isolado. Aprendi isso com o Bira, do Fundo de Quintal, presidente do Cacique. Falam que o pagode é mais chiclete e romântico, mas essa segmentação foi criada há pouco. Acho que foram criados vários estilos dentro do samba. Samba de raiz, samba comercial etc. Mas, tudo é samba; acho que não existe diferença não.

O.H.: Acha que isso, de alguma maneira, ocorre com o funk também?

Pedro.: Acho que o funk ainda une todas as classes. Acho muito bom o funk estar se tornando cultura. E funk tem uma identidade e virou cultura. Eu gosto do gênero. Tem muitos profissionais do funk que precisamos aplaudir.




O.H.: Pedro, você já se sentiu um intruso? Mesmo não tendo morado em favela, mas por ser de origem humilde? Afinal, estamos assistindo, calados, a um Rio de Janeiro cada vez mais excludente.

Pedro.: Bacana você estar me perguntando isso, Pedro. Eu já sofri muito preconceito. Por vários motivos, até por ser branco e de olho verde. Já vivi uma situação bem assim: tinha oito anos, estava tocando num barzinho; chega um músico do Zeca (Pagodinho) e fala para eu ir para a escola. Que samba tinha que vir no sangue. Cara, passaram três meses, o mesmo músico veio me elogiar para o meu pai, dizendo que me tornaria maestro. Até hoje falo numa boa com essa pessoa, mas a gente não esquece, né? (RISOS) Já sofri vários preconceitos. Viajava com a Mangueira e aqueles moleques me chamavam de playboy pra baixo. E po, sou criado no Água Santa, bairro pobre da zona norte. Sempre procurei ser famoso e que meu trabalho fosse reconhecido. E o assédio ta rolando mesmo. Até para entrar aqui no restaurante, duas meninas me abordaram ali fora na livraria.

O.H.: Onde você se sente inovando em Malhação?

Pedro.: Adorei a história, o roteiro. E nunca teve samba na série. Nunca. Teve um momento da minha vida que fiquei muito em dúvida com relação a tudo. Perguntei ao Milton o que faria. Ele me respondeu prontamente: faça música. Sem estudar, não existe possibilidade de sucesso. Demora, é difícil, mas Deus é justo. E digo mais: quem não é sambista, quem não curte samba, não consigo entender! Samba quebra e ultrapassa todas as barreiras. É não só para a profissão, mas para a vida.

CONFIRA O DOCUMENTÁRIO "PEDRINHO DO CAVACO"


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AGRADECIMENTOS:

Aline Nobre
Livraria da Travessa
Restaurante Fiammetta








quarta-feira, 14 de março de 2012

BIA WILLCOX - produção de conteúdos autênticos

     Neste março, o Blog O HÉLIO completa um ano de existência. E agradece sinceramente aos mais de 12 mil visitantes cativos do mundo inteiro. Nada mais vale do que a interação com os leitores nacionais, internacionais e brasileiros que estão vivendo fora do país.

   Várias entrevistas estão entrando sem ser quinzenalmente, no intuito de dar ao leitor, em curto tempo, um leque de experiências vividas por brasileiros bem sucedidos e originais nas áreas em que atuam. Nesse clima comemorativo, estreamos a entrevista filmada aqui no Blog com a publischer, também editora e educadora, Bia Willcox. Encerrará esse ciclo de entrevistas comemorativas, a conversa com a produtora cultural e formadora audiovisual Tatiana Azevedo. Essa entrevista será postada exatamente na data de criação do Blog O Hélio. 

     Em tempos de horizontalização nos meios de comunicação, homenageio também a toda a categoria de blogueiros. A Blogsfera, de fato, alcançou um espaço de cultura musical, literária, jornalística, histórica e política. Como aqui, n'O HÉLIO, muitos blogs são janelas abertas para variados e libertários discursos, os quais geralmente não se encontram nas mídias impressas mais tradicionais. Este lugar pretende ser, cada vez mais, de abertura de mentalidades, lugar de intensidade, abrangência, intervenção e ação e pensamento. Como o hélio, como o sol. Atingindo todos os solos, todas as pessoas e vozes.  Obrigado!
                   
                    Pedro Paulo Rosa


sábado, 10 de março de 2012

GUILHERME JÚNIOR - VONTADE DE SER INFÂNCIA



Por Pedro Paulo Rosa
Foto: Ravini Padilha
Revisão textual: Paulo Cappelli 



O idealizador do I Festival de curtas-metragens da Vila Kennedy (16 a 18 de março, no teatro Mário Lago, na vila Kennedy. Projeto apadrinhado pelo cantor Toni Garrido), o artista plástico, fotógrafo e produtor cultural Guilherme Júnior mostra sua vertente como cineasta nessa nobre empreitada de fazer do audiovisual ponte de boas histórias.


Guilherme começou a sua luta desde cedo, quando criança entrou na magia da literatura através do gibi de Maurício de Souza; na juventude, foi estudar Belas Artes na UFRJ e hoje tem uma bela história de superação a compartilhar. Saiu da sala do consulado norte-americano após ter sido negado nos EUA para ser, mais tarde, o ganhador do concorrido prêmio de fotografia World Photography Awards, em Cannes, na França. 




O HÉLIO – O que mais me impressionou no seu documentário foi a superação. Queria te perguntar sobre a sua infância. Como é que foi?

GUILHERME JÚNIOR – Posso dizer que foi humilde, mas uma infância normal. Sou o terceiro de quatro filhos. Meus pais sempre deram muito valor à educação. Meu pai sempre trabalhou, não tive muita presença dele na minha vida. Meus pais são casados até hoje. O trabalho fez com que meu pai só participasse da minha vida nos finais de semana. Um dos meus irmãos tem problemas mentais, mas vive conosco. Ele é aposentado por invalidez.

O.H.: Quando você fala que quem nasce em comunidade pode ver, sim, uma luz no final do túnel, o que você está querendo dizer com essa afirmação?

Guilherme – Quem nasce em comunidade tem a possibilidade maior de se envolver com o crime do que quem não nasce na comunidade. Citei os meus pais justamente porque eles me mostraram o caminho. Isso foi muito importante para mim. Moramos numa comunidade que ainda tem muitos problemas com drogas e violência, a Vila Kennedy. Acho que esses problemas estavam tão próximos de nós, que meus pais sempre me alertaram desse perigo. Eu, antes de qualquer coisa, parava e pensava nas dicas que meus pais sempre me deram. Isso foi um ponto primordial para o fato de, hoje, buscar a melhoria do local onde moro. Possibilidade de entrar para o mundo do crime, eu tive muita. Mas, dei sempre muito valor à educação e aos estudos. Acho uma idiotice se envolver com o tráfico. E utilizar droga nunca me chamou atenção. Mas, sei que nem todos têm uma família estruturada. A rua atrapalha e deslumbra qualquer pessoa de mente fraca.



O.H.: E a rua da comunidade não é a rua da cidade? Como é que você acha que a favela está sendo cidade também, está se transformando em ambiente urbano também?

Guilherme: Acho que está sendo cidade porque os moradores de favela, agora, estão tendo um certo respaldo por mostrar o seu valor. Antes, a favela era vista como um palco de marginais. Hoje em dia nem tanto. Porque a gente tem meios de mostrar a nossa cara. Acho que a internet, a televisão tem dado essa possibilidade. E isso é recente. Há dez anos, isso não ocorria.

O.H.: O que fica mais claro, nessa diferença entre cidade e favela, ainda é a ausência de serviços públicos?

Guilherme – Com certeza. E também a má educação. Se você não tem uma estrutura em casa para mostrar aos jovens que eles precisam ir à escola para se profissionalizar, eles não vão se interessar.

O.H.: Você estudou em colégio particular?

Guilherme: Eu? Estudei. Meu pai via que eu tinha...que eu gostava assim, e então ele resolveu investir. Eu sempre fui muito esforçado, sempre corri atrás dos meus sonhos. Tenho muitos. O principal é viver da arte. Hoje, ainda não consigo viver da arte totalmente, mas estou no caminho. E não preciso me vender.

O.H.: Se vender seria o quê?

Guilherme: Seria se vender para o mercadão de trabalho. Sei que é complicado se sustentar na área das artes.

O.H.: Trabalhar na Globo, por exemplo, você acha que seria se vender?

Guilherme: Nem tanto, porque trabalharia na minha área. Queria ter a experiência. Todo mundo sabe que a Globo é um dos principais meios de comunicação do mundo e do Brasil.

O.H.: O que você acha que determina mais no sucesso do sujeito, a busca, o esforço próprio como na sua vida você fez e teve ou é o colégio público ou particular que o sujeito recebe?

Guilherme: Ambos. Se não houver interesse do aluno, por mais que o colégio seja melhor, não vai influenciar. Tenho amigos que estudaram comigo e trabalham vendendo gás ou como engraxate. Sempre fui muito determinado com a profissão que gostaria de exercer, ou seja, ser artista. Mas, já mostrava muito a minha cara quando era criança, gostava muito de receber elogios dos meus professores das coisas que inventava. E os desenhos e as redações sempre ao meu lado. Sempre estava rascunhando. Meu pai trabalhou um tempo para a editora Globo e levava muitos gibis lá pra casa, eu amava, ficava vidrado com a “ Turma da Mônica”. Na minha infância, acho que o Maurício de Souza foi o autor que mais me tocou. Até hoje me toca, apesar de não acompanhar mais.

O.H.: Por que você acha que o audiovisual está entrando na favela com tanta força, a exemplo do Festival Curta Vila Kennedy?

Guilherme: Pela evolução mesmo dos meios de comunicação. Hoje em dia está tudo mais barato, em termos de tecnologias. Você pega uma câmera de celular e a partir dali pode contar uma história. Comprei minha primeira câmera digital, quando ainda era 2.1 mega pixels. Isso faz um tempo, ainda fazia faculdade. Achava que minha câmera era a melhor do mundo (RISOS) E era a pior! Tinha memória de um minuto. Gostava muito do Legião Urbana. E resolvi fazer um filme com esta temática. Comecei a filmar e a fazer umas encenações cantando a música do Legião e sempre assim, com muita paciência, rodei o Rio inteiro. Filmava um minuto e ia descarregar. E uma amiga minha falou que estava rolando um concurso de vídeos numa rádio, isso faz uns seis, sete anos. Era um concurso na MPB FM. E, de repente, recebo um email dizendo que receberia um prêmio no Teatro Rival. Nem imaginava que ia acontecer isso! E a entrega foi lá, tinha um monte de gente. O prêmio foi um home theater, que dei para minha mãe. Foi muito bom. Um dia, acho que um produtor que assistiu trocou contatos comigo para fazermos trabalho em audiovisual. Ali, me descobri um artista multimídia. Antes, era só um artista plástico.




O.H.: Como artista plástico, como destaca suas preferências temáticas?

Guilherme: Gosto muito de arte näif, e como tema curto muito a infância, o lúdico. Gosto muito dessa linguagem que a gente tem desenvolvido que é a linguagem de favela, tudo muito colorido, criançada correndo pelas vilas, soltando pipa. Tenho desenvolvido alguns trabalhos nesse sentido.

O.H.: Você concorda com a transposição de linguagem que está sendo feita com relação à favela hoje em dia? Falo com relação desde programas televisivos ou até discursos publicitários atuais que enxergam a favela e o “ser carioca” como marca. Ou seja, favela enquanto mercado cultural ou produto de consumo pela classe média e rica do país. Ou, favela como lugar de “safári” do turismo.

Guilherme: Muito bom você estar tocando nisso, Pedro. Sou meio pessimista com relação a isso. Se não houver uma conscientização da classe média, as coisas se complicam. A gente pode interagir, mas cada um tem o seu cada um. O que acontece no “Esquenta”, por exemplo, é um programa interessante, mas tem coisas ali que ultrapassam limites. As pessoas que opinam no programa, geralmente, estão “no lugar de cima” e querem ser coadjuvantes do cotidiano da favela, querem brincar de ser da favela ou de conhecerem muito esse espaço. E vender uma imagem de inibição. Mas, se perguntarmos a eles onde eles vão dormir, com certeza essas pessoas irão descansar em apartamentos da Barra ou da zona sul do Rio. Nunca dormirão numa favela, ainda mais numa favela com problemas de segurança. Acho interessante eles admirarem o modo de vida da comunidade, mas que cada um saiba o seu lugar. Não estou querendo ser nem parecer preconceituoso, mas sim, a classe média que se utiliza do cotidiano do favelado dessa maneira está querendo se aproveitar. As pessoas da favela estão cada vez mais mostrando a sua cara.

O.H.: E qual que é essa cara?

Guilherme: Uma cara de pessoas pensantes. Conforme tinha falado, para os outros antes nós não pensávamos. Hoje, as pessoas percebem que a gente pensa. Quem tem coragem de subir na Mangueira, dormir lá três dias e participar integralmente de um evento? Se eu quero ir a um evento que fica na zona sul do Rio, eu vou porque quero ir. Mesmo que seja para tomar três ônibus. Esse lance, por exemplo, de fretamento de vans para eventos em favela, acho super desnecessário.

O.H.: Como é o seu posicionamento político?

Guilherme: O que eu vejo na política atual é muito interesse. Voto nulo faz tempo. Acho que essas regalias que os políticos têm faz com que eles vendam uma imagem que não os representa de verdade, entende? Não estou generalizando, mas tem gente que nunca pensou na política e, do nada, por um comercial bacana, entrou na política. Estou muito desiludido. E eu sofro com a violência e com a descriminação e não vejo mudança. Se nós não fizermos mudança, ninguém vai fazer pela gente, muito menos os políticos. Penso assim.

O.H.: Acaba sendo uma relação de amor e ódio entre os moradores e o governo; as produções da favela e as entidades do governo, né? Por exemplo, o Festival Curta Vila Kennedy é financiado pela Secretaria Estadual de Cultura.

Guilherme: Exatamente. Antes, achava que jamais conseguiria patrocínio para uma produção da favela. Atualmente, foi bem simples. E essa grana da secretaria possibilitou o começo do Festival. Acho que consegui essa verba pelo interesse verdadeiro que demonstrei, lá na Secretaria, de ajudar o local onde moro. Para defender o meu projeto, toquei na ferida. Sei que o Governo Estadual do Rio é responsável pela segurança da minha cidade, mas não tenho nenhuma segurança deles. O Eduardo Paes, não preciso nem falar dos boatos de que os cabos eleitorais dele deram grana para as pessoas. Tem gente que realmente vende voto por causa de cerveja e churrasco. Ou coisas idiotas. Então, toquei na ferida porque falei de violência para defender a verba do projeto. Disse que não temos direito de ir e vir na nossa favela.

O.H.: Agora, Guilherme, mudando um pouco o assunto; sobre a liberalização do uso de drogas, como você, enquanto morador de favela, se posiciona frente a esse assunto?

Guilherme: Ora acho que a droga faz muito mal, ora acho que deve ser liberada. Já sofri muito por conta delas. Apesar de não ser usuário, se a violência atingiu a minha família, posso “agradecer” às drogas. Houve uma época que o Rio estava praticamente sitiado por cantões do tráfico. E meu bairro sofreu muito com isso. Muito dos usuários que compravam droga na Vila Kennedy não eram de lá, vinham de outros bairros e deixavam problemas imensos para minha família e a família de meus amigos. E a gente não tem o direito de ir e vir. Posso dever isso às pessoas que utilizam drogas. Você não mede as consequências enquanto se droga. Eu que estou lá dentro observando essa degradação, fico chateado. Porque atinge pessoas que nada tem a ver com isso. Acho que a liberalização da maconha e de outras drogas é um tema muito polêmico. Sei lá, o que poderia acontecer depois da liberalização? Será que as bocas de fumo continuariam bombando? Só acontecendo para a gente conferir como isso ia se dar. Meu ponto de vista é: não vou usar nunca. Não posso compactuar. Você acaba se vendendo e se tornando um problema para a família, para você mesmo e para a sociedade. Comprar é reforçar a violência da sua cidade.

O.H.: Você concorda que a favela tem elementos parecidos de coerção? Exemplo: o centro social do político, a igreja e as lideranças carismáticas; as ONGs, a juventude, e a velha guarda da favela. Você acha que essa composição é comum em todas as favelas ou não sente esse desenho na Vila Kennedy?

Guilherme: É...antes, era muito na minha, nunca fui de participar de movimentos políticos e até hoje não tenho vontade. O que percebo é uma briga de egos. Como você chama, esses elementos brigam por egos. Vejo muito isso nas igrejas. Esse mapa que você narrou é bem real sim. Concordo. Ao mesmo tempo, esses líderes se dialogam. É um querendo puxar o tapete do outro. Hoje em dia, vou a reuniões, à festas da igreja. Dias atrás fui a uma reunião budista lá na Vila Kennedy. Tenho percebido que o interesse político e o dinheiro são os dois fins dessas lideranças coercitivas. Agora, é interessante notar que os artistas não compactuam com esses elementos comuns que tem toda favela. Como eu, atualmente, estou mostrando a minha cara para a comunidade, os artistas me alertam, pedem para que eu tenha sempre cuidado a quem peço ajuda.

O.H.: Você concorda que a religião acaba sendo um marcador social, um ordenador de gênero daquela região?

Guilherme: Sim, com certeza. Os líderes religiosos são formadores de opinião e de pensamento. Esse é o perigo. Engraçado que tenho ido muito às igrejas para divulgar o projeto (Festival Curta Vila Kennedy). Boa parte da minha vida fui católico, mas não tinha o ponto de vista de que o mundo era nada e que o catolicismo era tudo. Você ficar muito tempo na frente de um altar, venerando uma coisa pode ser perigoso. Não me revoltei, mas pude me levar à libertação. Hoje em dia não me vejo mais fazendo como antes, mas respeito muito todas as religiões. Até porque, grande parte da minha educação está ligada a valores religiosos.

O.H.: De novo temos uma dupla relação de amor e ódio, de gratidão e ingratidão.

Guilherme: Exatamente! (RISOS) Ingratidão porque não tive oportunidade, por um tempo, de ter um ponto de vista, não havia possibilidade de questionar. A igreja não permite muitas vezes. Fui a uma missa há pouco tempo com uma amiga e fiquei reparando nos coroinhas, com seus 16 anos. Lembro que um dos coroinhas conheço desde pequeno. Minha colega ressaltou para mim: “poxa, ele não teve oportunidade de ver nada na vida além da igreja, né?”. Pois é. Ele não pode saborear outras coisas interessantes do mundo.

O.H.: Queria te perguntar em que te acrescentou sua temporada de um ano de estudos na Europa.

Guilherme: Acho importante termos sonhos. Mas, os possíveis. Sempre sonhei em estudar fora. A primeira vez que tive vontade de morar fora foi quando quis ir para os EUA para aprender a falar inglês. E comecei a guardar dinheiro. O que eu gastaria com meus amigos ou indo para o cinema, guardava. Quando vi que tinha uma grana legal, pensei nas viagens. Comecei tirando meu passaporte. Quando mostrei aos meus pais meus papeis para a assinatura dele, ele me perguntou quem ia pagar aquilo tudo. Eu disse que eu mesmo quem pagaria. Para gente, de comunidade, sair do país é surreal. E nunca quis deixar dívida para meus pais. Em comunidade, os pais sempre vão achar que você é o filho. Daí, fui lá no consulado. Mas, não sabia que teria tanto racismo e preconceito me esperando. Sofri mesmo preconceito naquele consulado. Ela me perguntou num tom agressivo: o que você vai fazer lá? Mora com quem? Seus pais podem sustentar a sua viagem? Ela sentiu que eu era independente e que poderia não voltar para o Brasil. Ela olhou para mim, afro-brasileiro. Sabe? Ela nem olhou para os meus documentos. Ela só me disse que não entraria nos Estados Unidos. Disse que não mostrei documentação suficiente que comprovasse que voltaria para o Brasil. Consegui juntar R$ 10 mil reais, os primeiros meses estava safos. Como sou muito ligado à infância, queria muito conhecer Orlando. Um lugar bem infantil. Mas, tive que voltar ao meu cotidiano, voltei ao meu chefe, pedi o emprego de volta. Estava tudo certo para a viagem, Pedro! Continuei a juntar grana e fui para a Europa. E foi muito interessante! Quando pus meus pés lá, as coisas se abriram. Sabe quando você não espera muito que as coisas aconteçam, e a natureza ajuda tudo a acontecer? O primeiro fato foi essa premiação de fotografia que ganhei em Cannes. Para você ter uma noção, no mesmo dia de pegar o voo para Portugal, recebi a ligação da Inglaterra informando que minha fotografia ganhou o concurso World Photograph Awards. E eu, como assim? (RISOS). Não imaginei que poderia ganhar, era um premio internacional. O premio consistia em duas viagens para Cannes, duas viagens para a Copa na África do Sul e um trabalho para a Sony. Quer dizer, eu estava saindo do Brasil já para ir para dois lugares diferentes. A minha emoção estava muito conturbada. Estava sendo assediado pela imprensa; depois que o premio foi anunciado, recebia várias propostas de entrevistas. Mas, foi muito gostoso. Quando se pensa em Cannes, se pensa em glamour, e é mesmo uma cidade muito bonita. Mas, tenho muito pé no chão. Foi algo que passou, não tenho mais vontade de viver isso. Cannes é lindo, mas todo mundo viu que ganhei um premio. Se não tivesse subido ao palco, ninguém ia chegar em mim. Foi tudo muito artificial lá, ninguém queria saber da onde vim. Sabe? Como que foi prazeroso para mim estar ali (suspiros).

Foto: Guilherme Júnior.
Com esta fotografia, Guilherme ganhou o prêmio World Photography Awards em Cannes, França


O.H.: O que mudou na sua concepção de arte e de vida, que você está trazendo agora para o Festival na Vila Kennedy?

Guilherme: Sempre fui muito pró-ativo, de não ter tempo. De dormir preocupado com o amanhã cheio de compromissos. E na Europa, apesar de estar longe de casa, aprendi a fazer minhas produções. Participei de muitas exposições minhas por lá.

O.H.: Quer dizer, você amadureceu a sua pro - atividade na Europa?

Guilherme: Exatamente. Amadureci e quis fazer a minha primeira exposição individual. E fiz. Foi tudo muito por adaptação. Hoje em dia, os europeus abriram as portas para mim. Por exemplo, não tinha grana para minha exposição. Não tinha grana para comprar meu material! Comecei a trabalhar com lixo. Aqui no Rio já tinha trabalhado com lixo reciclável numa escola de samba carioca. Lá na Europa, pegava os lixos dos meus amigos e os meus e ia juntando materiais bacanas de lixo. E ia vendo o que servia. A galeria que ofereci minhas peças tinha todo um diálogo com a sustentabilidade. Reproduzia trabalhos de artistas famosos, como Matisse e Picasso, em peças de lixo. Ficava imaginando o trabalho deles junto com o meu. O nome da minha exposição em Granada, na Espanha, foi “ Reciclar com Arte” e “ Eu Amo Lixo” em Porto, Portugal. E fui participando também de exposições coletivas, interagi com outros artistas.

O.H.: Sentiu algum preconceito lá fora?

Guilherme: Pelo contrário, fui muito bem recebido. É impressionante como me abriram portas. Tudo quanto foi lugar que conheci, tinha ou fazia um amigo. Teve uma vez, num hostel na Espanha, que fiz amizades com uns alemães, e meu inglês era capenga. Mas aí, a gente ia tomar cerveja e conseguíamos nos entender bem (RISOS). E esses amigos alemães, por exemplo, me proporcionaram uma excelente visita a Paris. Fui também andar pela Inglaterra e ia vivendo na casa das pessoas e passava dias! Então, essa relação que tive, Pedro, foi muito boa porque não sofri nenhum preconceito. Mas, conheci brasileiros e brasileiras que sofreram muito preconceito.

O.H.: Para fechar, qual o recado que você dá  a quem deseja participar do Festival Curta Vila Kennedy?

Guilherme: O festival é de 16 a 18 de março, no Teatro Mário Lago. É um projeto, como você bem lembrou, patrocinado pela Secretaria Estadual de Cultura. Quero fazer com que as outras pessoas possam ser aplaudidas mostrando o seu valor. Quero mostrar que dá para ser amador e profissional. Esse festival não é apenas para moradores; qualquer um pode participar, desde que o curta metragem tenha 15 minutos. Todas as três categorias possuem prêmios, apenas uma categoria é destinada aos moradores da Vila Kennedy. É só entrar no nosso site curtavk.blogspot.com Lá tem todas as informações. Dia 16 de março, começam nossas atividades a partir das 14 h e vai até às 22 h. Fizemos parcerias com Visões Periféricas, Ponto Cine, Viva Favela, Estética Central e a gente está divulgando muito e estamos querendo levar o Rio de Janeiro para lá e mostrar o que há de mais interessante na comunidade: os moradores. Tanto que a nossa publicidade é toda relacionada aos moradores; na Vila não tem só traficantes, tem muitas famílias, muita gente boa que quer mostrar suas virtudes e suas histórias.

O.H.: É o audiovisual como ponto de contato.

Guilherme: Exatamente. Como forma de mostrar coisas lindas. Porque eu sou de lá e pude mostrar o meu valor. Mostrei até para a Europa. A gente pode descobrir cineastas e atores excelentes depois desse festival.

O.H.: Para encerrar: você se sente na obrigação de ter ganhado o mundo e depois ter voltado à sua “terra” para compartilhar?

Guilherme: Com certeza! Eu sou muito de família. De mostrar para pai e mãe, sabe? Acho super interessante a gente ir lá fora, mostrar nossa cara e depois voltar para a sua comunidade e dar oportunidade para nossos conterrâneos. É muito importante, Pedro, que a Vila Kennedy saia na parte de cultura dos jornais e não só na parte policial. É bom saber que você está contribuindo para melhorar a imagem do lugar que você cresceu. Gosto muito de receber essa resposta, esse feedback. Isso é muito coisa de infância, de fazer o trabalhinho da escola e mostrar para os pais depois, sabe? (RISOS) Eu sou muito infância.


CONFIRA o documentário de Guilherme Júnior










quarta-feira, 7 de março de 2012

JULIA BOSCO - a expressão de seu "TEMPO"

                                                       


      
Por Pedro Paulo Rosa
Foto: Ancar Barcalla
Revisão textual: Paulo Cappelli

            Julia Bosco está lançando o seu CD de estreia. Ela separa seu tempo para conversar com O HÉLIO sobre “Tempo”, nome que dá ao seu primeiro trabalho musical. De voz meiga e,às vezes, tímida, a cantora e compositora escolheu falar de amor, de encontro e de reencontros para se mostrar. Filha de João Bosco, ela mostra não ter medo das sempre recorrentes comparações.
            O “Tempo” de Julia conta com a participação do seu pai e de Marcos Valle, e é produzido por Plínio Profeta e Fábio Santanna. Destaco como uma das melhores faixas do CD as músicas “ Na Oração” e “Play a Fool”.

O HÉLIO: Impossível não te perguntar: há medo de ser comparada com seu pai? 

JULIA BOSCO: Existe um medo de que a curiosidade sobre o meu trabalho seja apenas alimentada por esta possível comparação, e com isso um segundo medo de que as pessoas, ao perceberem que não há comparação natural possível entre um trabalho e outro, forcem para que isso aconteça da pior maneira possível. São trabalhos absolutamente distintos, inclusive nas premissas mais básicas e fundamentais: João Bosco é uma marca musical construída em 40 anos de uma carreira sólida e constante, de um artista que não precisa provar mais nada a ninguém. Julia Bosco é um lançamento em fase de experimentação, com um longo caminho de erros e acertos pela frente.


O.H.: Por que o nome " Tempo" para o seu álbum de estreia? Homenagem, gratidão a ele...? 

Julia: Sim: homenagem, gratidão e respeito! O Tempo esteve sempre ao meu lado, jogando ao meu favor, descontando unicamente o tópico "ação gravitacional sobre o corpo feminino" (risos). Eu não estava pronta psicologicamente para "sair do armário" como cantora, e então esperei. Dei tempo ao tempo e ele me retribuiu com um grande momento criativo e algumas pessoas que se tornaram essenciais para a realização deste trabalho. Então, só tenho a agradecer pela possibilidade da pausa. 

O.H.: Como nasceram as 13 canções de "Tempo"? 

Julia: Algumas já existiam e faziam parte de um repertório guardado do Fabio Santanna, mas eu me identifiquei tanto com elas e com ele, que me apropriei destas canções como se fossem minhas. As outras surgiram quando começamos a compor juntos. Eu nunca havia escrito música antes desse disco, estava acostumada a escrever longas prosas para o meu blog, mas canção é muito diferente. Então peguei carona na experiência do Fabio e começamos a contar coisas que se tornaram músicas feitas a quatro mãos: viagens, sonhos, medos, esperanças... Cada música tem uma verdade por trás, isso é muito bom na hora de compartilhar com as pessoas.

O.H.: Quando se decidiu pela música definitivamente, ou seja, largou o trabalho e focou nas notas musicais? 

Julia: Quando fiz 30 anos tudo mudou. Eu costumo dizer que algumas mulheres se assustam e olham para Balzac de ladinho, só com o rabo de olho, com medo do que vão encontrar. Mas eu encarei de frente mesmo! Encarei as mudanças, procurei os vazios, remexi tudo que estava guardado dentro de mim e o que saiu pulando de dentro do meu corpo foi música. Entendi que era a hora. Passei a vida me preparando, não ia fugir quando fosse a hora. "The readiness is all", já dizia o príncipe dinamarquês: estar pronto é tudo!
E mesmo depois de me decidir por música eu continuava trabalhando como consultora de gestão, porque precisava pagar o disco!  Só larguei definitivamente o crachá de funcionária da empresa quando não tinha mais dívidas a pagar e poderia recomeçar do zero, sem nada me atrapalhando, nesta nova empreitada.

O.H.: Conta como foi o encontro com o produtor musical Fábio Santanna. 

Julia: Foi um daqueles momentos em que "júpiter se alinha com marte" e tudo dá certo... Eu estava procurando parceiros com quem me identificasse, alguém que tocasse um instrumento e pudesse estar comigo nessa busca por uma identidade nova, porque eu queria um trabalho pessoal, autoral. E o Fabio era essa pessoa: a gente tinha gostos complementares e tudo que a gente fazia se somava. Foi o cara certo na hora certa. Tornamos-nos parceiros musicais, parceiros de vida, e fizemos juntos esse disco, que teve também produção do Plínio Profeta além do Fabio. 

O.H.: Como foi a construção da musicalidade na sua vida? 

Julia: Foi como aprender a falar: natural. Não me lembro de nada, nem um único episódio da minha vida, que não me remeta a uma trilha sonora. Música sempre foi o tema principal da minha história e com isso eu fui desde cedo percebendo música de uma outra forma... Sempre prestando uma atenção especial às cantoras, às divas, e tentando imita-las, cantando com elas... 

O.H.: Seu atual e primeiro trabalho toca em quais lugares da esfera humana?

Julia: Este primeiro disco é muito focado em questões sentimentais, no amor. Isso porque ele nasceu de um momento de amor, foi feito com uma espera muito grande, fundamentada e alimentada por amor. Talvez por isso as "coisas de casal" sejam tão recorrentes neste trabalho, porque ele é muito pessoal. Contudo, quem não se identifica com essas coisas todas? Acho que o grande trunfo do disco está na simplicidade dos temas e na possibilidade de identificação imediata. 

O.H.: Doeu fazer o disco?

Julia: Não. Dizer que foi fácil é mentira, porque eu tive que abrir mão do meu auto-controle, das minhas inseguranças e medos, e falar de mim abertamente para quem eu nem conheço. Mostrar a voz as vezes é mais difícil do que parece, principalmente quando se canta uma vida inteira de espera. Mas foi bom, como um processo de terapia. Doer mesmo, só no bolso! Artista independente sofre é para pagar as contas!

 O.H.: Qual seria a marca, em termos de autoralidade, da Julia Bosco?

Julia: Acho que ainda é muito cedo para dizer qualquer coisa de forma tão definitiva. A consolidação deste trabalho virá com o tempo (sempre ele!), neste primeiro registro musical eu prefiro não tentar dar nome a nada: nem à forma e nem ao conteúdo. Estou experimentando coisas, curtindo o percurso sem pressa de descobrir qual o destino final. 

O.H.: Sua voz é muito meiga. E o seu olhar, forte. Concorda que força e leveza estão presentes em suas composições?

Julia: Sim, concordo. Mas acho que isso também é em função do momento. Quando fizemos as canções e eu gravei o disco, estava vivendo (estou ainda) este momento de amor e entrega, de mudança e fé. Então isso tudo de alguma forma deu o clima do trabalho. Mas nada impede que no próximo disco eu mostre um lado meu mais ousado, mais roqueiro e obscuro! Tudo em seu tempo...
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O.H.: Como foi entrar no palco pela primeira vez? Qual a sensação? 

Julia: A sensação inicial é sempre a mesma: mãos suando, coração acelerado,firo na barriga e muita ansiedade. Isso dura as duas primeiras músicas! Depois a sensação é de "daqui ninguém me tira hoje" ! A minha maior expectativa agora é de dividir pela primeira vez o palco com o meu pai, no meu show de lançamento aqui no Rio. Isso sim vai ser PUNK!

O.H.: Agenda para show? 

Julia: Sim, por enquanto sei que o lançamento no Rio está confirmado para o dia 11/04 no teatro Rival, com participação de João Bosco. No mais, vou colocando no site www.juliabosco.com quando confirmado.

O.H.: Qual o recado manda para quem está começando a conhecer o seu " Tempo"?

Este é um tempo de amor e fé, de sol e alegria, de muitas novidades, e é de todos nós. Entre que a casa é sua... 

 CONFIRA o vídeo-release de Julia Bosco: